quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Amor nos Tempos de Câmera*

João F. Quirino

Poucos lugares são tão insalubres quanto a praça de alimentação de um shopping center na hora do almoço. Para Clara, o almoço é um afazer tormentoso, não um momento de descanso. Preferiria trabalhar as oito horas ininterruptamente. Após longos dez minutos de tentativas infrutíferas, radicalizou: sentou-se no chão para devorar o insosso fast food. Mais do que o desconforto para comer, incomodava-lhe a câmera no canto alto esquerdo; parecia persegui-la, vigiando sua conduta, julgando seus modos “à mesa”. Se falasse, a câmera diria: que homem é capaz de suportar uma mulher que come sentada no chão de um shopping center?

Finda a refeição, depositou o lixo no local apropriado, tal qual um adestrado frequentador de McDonald’s. Pediu um café no quiosque ao lado e abriu o livro cujas páginas percorria a duras penas. Não que lhe fosse custosa a leitura. Pelo contrário: adorava livros e, em especial, adorava Gabriel Garcia Márquez. Mas era obrigada a admitir: esse texto não lhe apetecia como os demais. Sobretudo, pela desagradável familiaridade. Quando, enfim, vingará o amor entre Florentino Ariza e Fermina Daza? Intrusivos, os personagens remetiam à própria busca vã de Clara em manter o amor que supunha ter construído. Não obstante, depois da briga de ontem, tudo parecia em ruínas. Ele até admitira a existência de uma outra. Seria verdade? Ou uma jogada infantil para lhe causar ciúmes? Se fosse verdade, será que ele realmente amava a outra? Como ela seria? Clara sorriu, nervosa, ao pensar que melhor seria identificar-se com Romeu e Julieta; estes, pelo menos, sacrificaram-se para eternizar o amor. Melhor a morte do que toda uma vida de desencontros.

Resolveu dar uma volta pelo shopping. Quase todas as lojas tinham promoções nas vitrines. Imaginou que ela própria, caso não reatasse seu namoro, seria também uma espécie de produto em promoção. Em todas as lojas via câmeras que captavam sua presença e a julgavam. Decidida a voltar ao trabalho, Clara descia rapidamente as escadas rolantes rumo à porta de saída, embora sobrasse um tempinho para gastar com indagações íntimas sobre o amor - será que ele ama mesmo a tal moça, será que me amava ou, apesar de tudo, ainda me ama? Sentia-se cada vez pior à medida em que observava as mercadorias expostas. Via-se como uma TV de plasma, um par de tênis ou um colar de brilhantes, à mostra, tentando provar-se atraente, valorizada e ao mesmo tempo acessível ao homem que lhe recompensasse com afeto, atenção... amor. Mas que diabos, afinal, significa amor?

De súbito, a loja de roupas íntimas sugou-a para dentro. Mal dera o primeiro passo, a maldita câmera de segurança voltou-se a ela, inquisidora: “o que faz aqui uma mulher solitária?” Calcinhas e baby-dolls dirigiram-lhe outra pergunta: “você nos deseja como armas?”. “Sim!”, respondeu resoluta, encarando a câmera como quem enfrenta a um inimigo mortal. Autoconfiança, já lera em alguma revista no cabeleireiro, era a alma do negócio. Hoje, posso até ser uma mulher solitária; mas, quem sabe, aquela lingerie não mudará o curso da história. Ato contínuo, lembrou-se das noites que passara com seu amado, das mãos argutas retirando seu sutiã. Sim, se o sutiã fora protagonista em tantos momentos, por que em outros não seria aquela lingerie?

Perdida em quimeras, Clara mal notou a aproximação da atendente. Num rompante, estava à sua frente uma sílfide e, com ela, uma sensação arrebatadora de impotência. A belíssima jovem, ostentando longos cabelos negros e sorriso encantador a deixou em pânico ao decifrar seus mais íntimos devaneios: “Gostou da lingerie, não foi? É infalível, já experimentei. E está em promoção”. A câmera, zombadora, voltou-se para Clara às gargalhadas: “Percebe, minha amiga, não basta valorizar-se como produto; é preciso enfrentar a concorrência”. Clara viu na atendente a dita cuja que lhe roubara o amor. Aliás, seria mesmo amor? Fitou-a, em inútil tentativa de se revelar soberana, mas incapaz de esconder a fragilidade. “Sim, gostei...”. A frase incompleta chocou-se como um desastre automobilístico na fala da atendente, endereçada ao homem que acabara de chegar. “Oi, amor. Espere um pouquinho, estou atendendo essa senhora, logo vamos almoçar”. Clara olhou para trás e a imagem a nocauteou como se fosse um cruzado no queixo. Não teve tempo para simular o semblante de quem estava sob o controle da situação. A única reação possível foi mudar a direção do olhar, buscando desesperadamente esquivar-se da atendente, do homem, da lingerie e da câmera. Mesmo cabisbaixa, não conseguiu deixar de ler a os dizeres no balcão: “Sorria, você está sendo filmado”.

* Adaptação do texto homônimo, escrito por Ana Rüsche (Cena II).

Dramamix 2007. Coleção Primeiras Obras. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Mãe

Pedro Aragão (Conto extraído da obra não publicada "Uns Contos Do Samurai")

Via as luzes do mundo, de olhos fechados, enquanto a beijava, não sentia o tempo, enxergava o espaço. Éramos um só; Ela, eu e a remuneração. Cabelos volumosos e pesados contornavam o rosto delicado. O nariz bonito e grande contrastava com o olhar fino e mandante. A boca não falava, mas a garganta produzia ruídos multiformes. As orelhas estavam prontas para o sussurro. Sem nome, sem vida, sem morada, sem voz, sem carinho, com shamisen e com amor, cantarolava a canção herdada pela avó-mãe. A avó-mãe trabalhara outrora no mesmo quarto que, agora, a neta-filha me embalava no colo. Os braços dela eram de moça jovem e as pernas de moça livre que contornavam a flor desejada. As mãos com dedos longos pareciam luvas de seda que acariciavam meu rosto e meus sentimentos. Os pés eram como uma raiz polida por uma beleza natural.

Ela e eu. Não tínhamos nada em comum, só a alcunha bastarda. Não tínhamos mãe. Não a conhecemos, morreu ou fugiu, não sabíamos, não saberíamos, por isso, entregávamos gratuitamente o amor maternal. Tenha calma leitor, lhe explico nosso conceito, o nosso complexo: eu dava de graça as minhas economias, ela dava de graça a sua anatomia.

A essa altura, cabe contemporizar o cenário. Era um lugar escuro e escondido nas estradas de Edo, o convite aos homens com ou sem espadas para o repouso com moças, jogos de azar, música e um bom sakê. Munidos somente de carência, os homens chegavam àquele casarão colossal que dispunha de inacreditáveis centenas de quartos do mesmo tamanho. Não era um casarão com poucos pisos, eu subia cerca de 30 degraus para chegar em meu quarto de costume. Havia comida à venda em abundância e pelo mísero preço de uma moeda de ouro, recebíamos uma noite de cuidados, ou, se preferir, uma noite de pecados.

Voltemos ao quarto onde eu estava.

Pularei os pormenores. Suamos a noite inteira, deitamos na madrugada. Minha musa não era minha exclusiva, porém, eu dela era. Havia uma paixão. Depois de um tempo, enquanto fitávamo-nos, com pena e pouca tinta, eu lhe escrevia um poema; ela me desenhava.

Contemple o poema:

O sol
Que é vida
Bate no mar
Rebate nos seus olhos
E me arrebata
Me mata
Sim, sou a morte
Em busca de um repouso,
De um cemitério de amor
Que pousa em seu seio
O cais me espera...

O poema está incompleto, não me lembro bem, mas prometo ao leitor uma futura adimplência dessas escrituras.

Ela me desenhou. Mostrou-me a gravura. A foto-imaginação de um samurai maior que as montanhas que enfrentava a braços nus um castelo que desmoronava sobre o vale. Confessou-me que a tela era a representação de minha força e de meu garbo. Discordei da força. Eu era de fato, um samurai abastado em decorrência dos muitos serviços feudais prestados. Matava pelas moedas. Matava para subnutrir meus medos. Matava para completar a família de corpos da minha vida. Minha mente foi longe, mas voltei pra minha amante. Com voz de cansaço e o tilintar costumeiro de um sino, ela me informava o fim da noite, início do dia, meu tempo acabara e o relógio da realidade precisava ser religado.

Segui pro meu labor com vontades e sem saudades.

O que eu percebo é que os civis de hoje em dia não entendem a importância de deixar os lamentos da vida mal vivida em suas casas. Sou diferente, esqueci a moça. Minha função de vigia no momento solicitava atenção e desprendimento total. Cada movimento estranho detectado na casa de meu Senhor proporcionava uma tensão avessa. O serviço era duro. O dia foi longo.

Dispensado dos meus afazeres, decidi por visitar minha moça novamente. Não tinha esse costume, mas por capricho ou anseio fui atrás dela. Ia a pé. Passei por uma área campestre e decidi usar a floresta como atalho. De longe, já se ouvia a bagunça do casarão, confesso que fiquei ansioso, por isso, aumentei as passadas e soltei de vez as batidas do meu coração, corri. De repente, um eco de uivos me assustou! O cheiro de carne podre e o som dos passos sincronizados denunciaram uma nova situação, estava ilhado entre lobos.

Pouca luz e muitas moitas. Subi a árvore mais alta que avistei. Os lobos cercaram o tronco. A maioria dos lobos estava com ferimentos no corpo que eu não conseguia identificar se foram acometidos por uma peste ou por algum confronto. Entre eles, havia um que perscrutou-me por um tempo. Fiz o mesmo gesto de olhar, nos encaramos durante muito tempo. Nos olhos escuros do animal, via-se um brilho. Como eu não tinha como escapar no momento, deixei o tempo passar e concentrei-me nesse brilho. Enquanto aguardava a chegada do dia para tentar a fuga, comecei a imaginar a estória de vida daquele quadrúpede. Um animal cinzento que nascera na floresta tinha qual propósito? Viera de onde? Vivera para quem? Imagine o leitor comigo, quem cuidaria desses animais, senão eles? Provavelmente existe um código de proteção ou uma espécie de contrato que as matas institucionalizavam aos seus moradores. Instinto não livra ninguém da extinção. Haveria então, um congresso, uma assembleia florestal para cada vida nova. Essa assembleia era espiritual, acontecia apenas em suas mentes irracionais. Cada um saberia seus limites, seus deveres e teria liberdade pautada na sobrevivência. Mas para cumprir este contrato, os animais precisavam de um ente que sinalizasse as nuances de viver em grupo. Um líder capaz de cuidar, mas também, de bronquear sem maltratar. Este líder seria um diplomata abstrato que estabeleceria o tempo e o espaço de cada ser. Mas como seria esse líder? Pensei na figura do Senhor do feudo em que eu era vigia. Um homem dotado de muita inteligência e influência. Porém, é de se notar que o Senhor tinha um senso de justiça pouco admirável, não cuidava bem de seus empregados, e preferia apontar o culpado, ao invés de encontrar a solução do problema. Lembrei então, do meu sensei. Este era um homem que tinha na força e na concentração suas maiores virtudes. Entretanto, era sucinto demais com as palavras. Pensando bem, nunca compreendi os dizeres desse meu mestre. Na verdade, a floresta precisava de alguém mais completo, mais presente e mais coeso. A natureza é incompreensível aos olhos nus, cheia de perguntas e complicada nas respostas. Imaginei muitas pessoas como chefes da mata, mas nenhum cabia no cargo. Repensei a minha pesquisa mental e confrontei os adjetivos e as falhas de todos os pretendentes. Nenhum era capacitado.

A madrugada contínua me presenteou com pálpebras cansadas. Os lobos dispersaram em posição de defesa e preferi aguardar mais um pouco. Minhas divagações se foram e, na falta delas, me pus a pensar na minha moça. Já havia esquecido do meu propósito de ir ao casarão. Pela primeira vez na noite, sentia falta de estar nos seus braços. Ela estaria me esperando? Ou estaria cuidando de outro? O sono me pegou.

Acordei com o alarido das aves! O sol tomara conta da floresta. Olhei em volta e não enxerguei vestígios da matilha. Desci sorrateiro e por entre a mata corri para casa do meu Senhor. Era mais um dia de trabalho, de vigia.

Para evitar que eu ficasse preso na floresta novamente, nunca mais voltei ao casarão. O tempo fez com que eu esquecesse a minha moça, neta-filha que tinha avó-mãe. Procurei outros casarões, encontrei outras moças e continuei buscando o amor materno.

terça-feira, 17 de julho de 2012

100 Palavras

Glauber Piva



Rego

A calcinha lhe apertava a bunda, insinuante. Não gostava de calcinhas grandes, mas também não suportava as pequenininhas, com um fiozinho fininho lhe roçando o cu e arranhando a alma. Preferia as médias, que lhe davam conforto e evitavam vexames.
Não era pudica, nem vulgar. Evitava exibir o cofrinho, mas não se negava a tirar a beiradinha da calcinha que lhe entrava no rego. Empinava a bunda, erguia a perna direita, levantava o calcanhar, esticava um joelho e com o polegar e o indicador invadia a própria bunda e resgatava seu conforto. Tão prosaica. Tão deliciosa. Tão dona da situação.

Picumã

Tratemos deste assunto sem muito pudor. Sejamos francos, dentro do possível.
O ano passado passou, o ano que vem ainda não veio e o que temos sob nossos pés é um dia caudaloso que escorrega por nossos poros e inunda nossa paciência a quase 50 graus e um bom bocado de energia dispersa.
Sejamos honestos: o ano começou quente, as promessas já agitaram o que tinham pra agitar e só temos nos bolsos o que restou de nossa boa-fé. Juntemos tudo e sigamos. Encaremos o calor, sejamos ignorantes e covardemente corajosos. Façamos da preguiça, ócio. Sem medo, força no picumã!

Excrescência

Como diversão, imaginava filhos numa combinação higiênica de cesárea, creche, babá. Não poria as mãos nas fraldas nem nas orelhas, reservando os beijos para datas especiais e os abraços para reuniões familiares.
Sempre soube o que não queria: paternidade, matrimônio, respeitos inúteis... mas sabia aceitar a conveniência da demagogia em conversas plastificadas que exibem marcas de novela e olhares de cinema.
A vida mudou. O mundo ofereceu-se outro. Engravidou-se como se tivera pedido pizza. Casou-se como se tivera colhido virose. Reviu-se como se tivera cagado uma moita. Demorou em entender-se. Precisou de um batismo de mijo para reconhecer-se um merda.

Olhos

Viu bundas de todo tipo que nem vale nominar. Em silêncio via detalhes, inventava nomes, distribuía notas e classificações. Em casos extremos aplaudia discretamente. Assim foi compondo seu personagem.
De manhãzinha era homem de família. Saía cedo de casa, trabalhava até o dia enrubescer. À tardinha, contemplava seus desejos passeando em trajes menores. Em segredo, queria comer quase todas: “tempero de bunda é a mirada da dona”, proclamava com ar inteligente.
Todos os dias, ao voltar para casa, carregava paixões na memória: dolorosamente. Toda paixão destrói um pouco. Paixão por bunda é pior: rebaixa a estima e paralisa o olhar.


* Também postado em www.glauberpiva.blogspot.com

terça-feira, 5 de junho de 2012

Canhão De Canhota

Pedro Aragão

Capítulo I

Na conversa dos torcedores

Grande América 2 X 0 Flamengo-RO – 45 min. do 2º tempo
- O Wagninho? É cracaço! Cê assistiu o jogo inteiro?! Do primeiro ao último
minuto, ele fez a diferença! Deu assistência, costurou a zaga, conduziu a bola
como poucos, que classe! E o gol que ele fez, um sem pulo na entrada da
grande área!
- Dizem que outros times estão de olho nele...
- Num pode não, ele tem que ficar no nosso Américão. Um canhotinho desses
é raro hoje em dia. Já ouviu a máxima de que canhoto ou é muito bom ou
muito ruim? Então... O Wagninho é um ótimo meia-esquerda! Ele consegue
aliar força com inteligência, coisa rara e joga pela equipe. Dizem até que ele
já jogou de atacante, de lateral, de volante e acredite se quiser, de zagueiro!
Também, com a visão de jogo e a habilidade com a bola nos pés que ele tem,
parece até, que é fácil jogar bola. Mas ele num fica muito tempo, sabe como
são os times do exterior...

Capítulo II

Na cabeça do Wagninho

Grande América 0 X 0 Flamengo-RO – 23 min. do 2º tempo
“Esse jogo tá complicado, o tal do Clebinho da zaga deles é muito zica! E
esses nossos dois atacantes são muito fracos... O Geovane é lento e parece
que a bola queima no pé dele. O Paulão é rápido, mas não levanta a cabeça.
Vou resolver sozinho...”

Grande América 0 X 0 Flamengo-RO – 31 min. do 2º tempo
“Já tô cansado, vou pedir pra sair.”

Grande América 0 X 0 Flamengo-RO – 35 min. do 2º tempo
“Vou esperar esse escanteio e peço pra sair”

Grande América 1 X 0 Flamengo-RO – 36 min. do 2º tempo
“Que golaço que eu fiz! De fora da área, agora não saio mais!”

Grande América 2 X 0 Flamengo-RO – 41 min. do 2º tempo
“Goool, chupa Fla! Finalmente o Geovane entendeu a jogada! Depois desse
passe eu vou sair no jornal!”

Grande América 2 X 0 Flamengo-RO – 47 min. do 2º tempo
“Aiiii, acho que quebrou o osso!”

Capítulo Final

No jornal de esportes

Grande América 2 X 0 Flamengo-RO
O CANHÃO DO AMÉRICÃO QUEBROU O TENDÃO

sábado, 26 de maio de 2012

A hora em que o sino toca

 - Sabe Sarah, você é a mais bonita da sala.
 - Mas é como eu te disse, se você quer sonhar com alguma coisa, é só você ir dormir pensando nela o tempo todo.


Era tipo requisito. Everson era bom nisso. Buscar garota na porta da escola. No caminho de volta tentar conquistá-la. Sarah queria ser valorizada, moça nova já querendo ser consagrada. Ele, o desbravador. Ela, a terra não conquistada.


O intento renderia a ele uma maria-mole cor-de-ouro no bar mais nobre, então mais frequentado. Uma proeza para seu reinado.


Sarah fez as honras, foi diplomática. Ele foi logo mostrando seu bloco econômico e ela de cara aderiu ao livre comércio.


No dia seguinte, a primeira dama oficial esbravejou. Na casa branca, no lençol branco não, meu amor. Aquilo não era sangue de moça, Everson argumentou. Que deu um chute na parede enquanto dormia, o dedo até quebrou.


Mas no hospital, em vez de engessar, o médico sentenciou: o Sr. é HIV positivo.


Everson despertou.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Estopim da fiel

Durante a semana quase nada. Pra se aproveitarem mesmo só o fim de semana.


Só briga o fim de semana.
Ele cana. Ela dama.
Ela samba. Ele fama. Cachorro, safado, sacana.
Ele mama. Ela engana. Faz que vai mas não vai, descansa.
Ele mirabola, arquiteta, devana.
Ela desmerece, desaprova, desabona. Pra fora daqui, reclama.
Ele pela janela o barraco inflama.


Segunda-feira, o perito questiona:
Brigou com o marido?
Dotô, faltava fogo na cama...


Terça-feira, o delegado:
Tá aqui por quê, cidadão?
Dotô, pus fogo na cama!

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Retirada de objeto

João F. Quirino

Sete meses de relacionamento intenso. Muita paixão no começo. Muitos encontros, muito contato. Muito sexo, sobretudo. Também, muito desgaste. Especialmente para ele, acostumado à liberdade. Alegou estar sufocado. Para ela, tudo aquilo era novidade; encontrava-se submissa de corpo e alma. Perdidamente entregue, envolvida pelo romance avassalador. Jamais imaginaria que ele, num ímpeto inexplicável, colocasse um ponto-final em tudo.

"Paramos para retirada de objeto dos trilhos”.
Ele olhou para o relógio e rogou praga. “Porcaria! Sempre assim: problema técnico, lentidão, atraso”. O coelho de Alice parecia gritar no seu ouvido: “Estou atrasado, estou atrasado, estou atrasaaaaado!”. Pensou pela enésima vez no telefonema da noite anterior. Ela, longe da pobre coitada de anteontem a mendigar mais uma chance, pediu-lhe um encontro usando palavras decididas e voz firme. Nos sete meses em que estiveram juntos, costumavam se encontrar na hora do almoço, sempre no restaurante a quilo próximo ao trabalho dela. Praticamente engoliam a comida e corriam para o hotelzinho ao lado, um manjado hospedeiro de prostitutas e drogaditos. Algo irrelevante frente à urgência de se amarem loucamente, ainda que por poucos minutos.
“Paramos para aguardar a movimentação do trem à frente”.
“Diabos! Vou chegar atrasado ao trabalho”, advertiu-lhe o coelho de Alice. Olhou para o casal de jovens estudantes sentado em assento preferencial – “juventude alienada!”, condenou. O garoto de brinco indígena e a menina de espinhas passageiras e beleza promissora vestiam uniformes de colégio batista e se lambuzavam numa interminável sucessão de beijos de novela – “juventude indecente!”. Para os dois, a lentidão do trem era mais que bem-vinda. Certa inveja foi inevitável, assim como o desejo de um último encontro... “Não, chega!”, determinou a si próprio. “Ordem dada, ordem cumprida!”. Até porque seria impossível: precisava retornar de imediato ao trabalho (andava mal cotado com o novo chefe) e o encontro seria em plena estação do metrô, perto das catracas. Aliás, por que ela queria vê-lo na estação do metrô? Não fazia sentido. Talvez por duvidar que seus corpos tolerassem inertes à proximidade recíproca. A sós, sem a patrulha de uma multidão, certamente não suportariam o clamor da lascívia. Ou, talvez, ela realmente almejava uma conversa somente: as últimas palavras de lamúria, as derradeiras juras de amor eterno, a finalíssima tentativa de reconciliação. Quem sabe, ainda, tencionava um grand finale colérico em que jogaria na sua cara o quão cafajeste e repugnante se revelara. A estação seria propícia a um escândalo passional. Fosse o que fosse, fizesse o que fizesse, a respeitaria, resignado.
“Os trens estão com velocidade reduzida e maior tempo de parada”.
Olhava seguidamente para o relógio ao mesmo tempo em que a voz decidida do telefonema e a voz insolente do coelho confundiam-se em sua cabeça. Ela estava eufórica com namoro, lembrou-se. Chegara a sugerir casamento, o que lhe fez concluir que as coisas haviam passado dos limites. Estranhíssimo o tom seco, quase indiferente, com que falou ao telefone – “Quero que me encontre na estação República, amanhã, às treze horas”. A voz entoou sólida, com autoridade, sem pestanejar; quem falava era uma pessoa absolutamente sabedora das suas intenções. Arguida, não deu pistas do que tencionava fazer ou mostrar. Apenas insistiu para que ele não faltasse, “custe o que custar”. Ele, acometido de um ligeiro peso de consciência, jurou que só não honraria o compromisso em caso de sequestro ou morte. Ela repetiu a última palavra – “morte” –, despediu-se com um monossilábico “tchau” e desligou. Treze horas, mesmo horário em que se encontravam no restaurante a quilo. A súbita imagem das prostitutas do hotel causou nele uma excitação jamais sentida. Por um instante, desejou que ela fosse uma daquelas prostitutas.
“Paramos para retirada de objeto dos trilhos”.
Até o casal de estudantes já se incomodava com a situação. O som de um zunido elevou-se à medida em que os passageiros multiplicavam resmungos. Ameaças de processar a companhia de metrô somaram-se às rogações para que esposas e patrões fossem indulgentes ante o atraso. Distanciado dos lábios da moça de beleza promissora, o rapaz de brinco indígena foi capaz de balbuciar algumas frases: “Já ouvi dizer que essa estória de objeto nos trilhos é lorota. Na verdade é gente que se joga, se mata. Tem suicídio à beça no metrô, sabia?”. A garota, cansada e faminta, não esboçou reação diante do mórbido relato. Ao contrário do nosso protagonista, cuja espinha gelou e o coração quase saiu pela boca. Após retomar o fôlego, olhou para o relógio em atitude mecânica, sem atentar para as horas. A fala resoluta da mulher na véspera soava como uma bomba. Afinal, o encontro na estação República passara a fazer algum sentido.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Visão Perfeita

Pedro Aragão

Cara, ela me fez uma surpresa incrível!
Sério, o que foi?!
Nem dá pra descrever...
Eu sei que você consegue, conta logo, vai!
Você não vai acreditar, chega a ser até utópico, foi mais ou menos assim:


Acordei da melhor forma, sem sustos. Sabe? Naturalmente. A aridez do dia permitiu uma sensação de chão gelado. Rocei o rosto dos meus pés no piso madeirado.

Senti falta dela e clamei Amor, onde cê tá? Preparando café respondeu com a sua voz suave. Pensei, paciência, ela já volta.

Toquei a parede rígida até chegar à janela. Escancarei aquele vão da vida pro sol entrar casado com a alegria! Nem a poluição dos sons e dos odores da cidade impediram meu plano. Ouvi as crianças da vila jogando taco e aquele cheiro da chuva de ontem.

Aos poucos, os passos compassados da minha esposa se aproximavam do quarto. Sentei na cama, ela tocou minha perna e sobrepôs a bandeja do café matinal no meu colo.

O calor do café chegou acompanhado daquele aroma único até a minha face. Cuidado com as frutas, ela advertiu. Peguei os pedaços de mamão, de melão, de manga, hmmm, todos eles, um de cada vez no meu paladar.


Eu tenho uma surpresa pra você, me falou ansiosa. Entregou-me um papel denso, mas de superfície lisa. Ela me alertou É do outro lado. Quando meus dedos sentiram as saliências de pequenos pontos eu já tinha me dado conta.


Agora olhe você com seus próprios olhos, parece coisa de outro mundo, né? Foi uma experiência em tanto pra mim! Que felicidade! O que você achou? É ou não é demais?

Que foi? Você tá muito quieto. Não entendeu? Olha de novo! Ainda não entendeu? Você não sabe o que é isso, né?! Peraí que eu vou te explicar. Eu passo a mão com calma e... Só um momento... Bom, aqui tá escrito o título, eu vou ler em voz alta:
Extra! Extra! Você tem em suas mãos o primeiro exemplar do Notícias em Braille!

sexta-feira, 30 de março de 2012

Peito de mulher

Glauber Piva

Ao acordar, esticou a mão em busca do peito da mãe. Voltou a dormir, mas desta vez segurava o mamilo esquerdo, o mesmo que lhe era oferecido antes do outro, quando ainda mamava.

Teve um dia agitado na escola. Nada definitivo, mas bastante sério para uma criança de quase três anos: empurrões, risadaria, provocações, cumplicidade e arranhões e galos de presente. Só precisava se recuperar pr’um novo desafio: dormir e segurar um bico róseo que lhe parecia seu.

Ao final, nos resta o mesmo que precisamos no começo: carinho, um pedaço de pele e um peito de mulher só nosso.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Nada a vê

Mas hoje, menina, até que eu tô animada, viu... a patroa comprou uma televisão daquelas grande, ai, é uma beleza! Ponho a tábua lá na sala e vô passando as roupa, fico a tarde inteira lá, nem vejo o tempo passar.

Cláudia respondeu dessa forma à colega de condução, a qual se queixava, no instante anterior, das adversidades que enfrentavam para chegar ao local de trabalho. Além dessa porra de ônibus  lotado ainda vem essa chuva do caralho pra ajudá. Esbravejava ela num tom capaz de alcançar os  ouvidos dos mais de 180 passageiros da linha 3407 Term. Pq D. Pedro, inclusive aos ouvidos dos  mais sonolentos, os quais lançavam em sua direção olhares que diziam, cala a boca que eu quero dormir.

A colega absorveu todos os olhares e com eles maquinou. Numa fração de segundos, os fermentou no
caldo da suspeita e da inveja para em seguida atirá-los sobre Cláudia, como se Cláudia insinuasse levar qualquer superioridade ou vantagem daquela situação.

Não era isso, Cláudia não era assim.

Ambas perceberam que na história da amizade entre elas, que talvez começasse ali, nada mais se registraria além disso.

Pouco importava. Tão logo Cláudia chegou a essa conclusão, tratou de ir para o fundo do coletivo, já que dali a alguns pontos chegaria sua vez de desembarcar. Não ter que ir até o centro da cidade, sim, era uma vantagem. Não perderia horas no trânsito e, o melhor, conseguia ver do começo todos os programas.

A caminhada do ponto até a casa da patroa foi ansiosa. Ela tinha uma cópia da chave, foi logo entrando.

Nenhum dos moradores estava em casa, todos já haviam saído para trabalhar. Porém, qual não foi sua surpresa ao perceber que havia sobre a rack um aparelho de tv a cabo. Instintivamente Cláudia pensou, como é que eu vou limpar isto? Será que pode passar lustra-móveis?

Se preparar para fazer o serviço era um ritual e ligar a tv era o primeiro passo.
Ligou, deu tela azul. Pensou que deveria ligar o novo aparelho e o fez, mas a tela continuou melancólica. Cláudia já não sabia o que fazer e resolveu dar início à labuta.

Durante o dia, todas as suas investidas para fazer a tv funcionar restaram frustradas.

No caminho de volta, dentro do ônibus, ouviu duas outras colegas conversarem. Sabe aquelas tv a cabo, só funciona se você por no AV da televisão, o técno me explicou. Cláudia reuniu os mesmo olhares pelos quais fora atingida de manhã e disparou contra elas.

Desceu no ponto final, mas ainda conseguiu assistir todas as novelas da noite.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Amente - A De Negação

P2A2

5 da tarde, ele é mais um covarde
Mas algum dia, também te faltou coragem
Testa franzida, ela ficou deitada
Garganta seca, disse meia palavra

Voltou no tempo, lembrou do dia inteiro
O celular vibrando, e ela no espelho
Mais uma ligação perdida
Ela já não sentia a culpa da falta... Já não sentia

Se distraía quando ela dizia do futuro seguro,
Pensou que seu presente é inseguro
Passou apuros com a moça do trampo
Insinuante mulher sem descanso, resistiu ao encanto

Enquanto ele se fazia de santo
A mina foi buscar acalanto n’outro canto
Aos prantos, a donzela não perdeu a laia
Seu refúgio foi embaixo de outra saia

Ele cansou de esperar a ligação
Decidiu encontrá-la, então, pegou busão
Ligou pro Rubião, falou da solidão
Que ele ficou na mão, que dói o coração
Ela estava em outra dimensão
Não via estrelas, ensaiava uma canção
Brincadeiras de mão em mão na mão da mão
Tesão, hormônios em ebulição

Cuzão, se fosse mais homem, reclamava
Se fosse menos homem, recuava
Mas preferia ser medíocre, sem palpite
Mas hoje não! Essa mina, vai ver o seguinte...

A porta bateu, mais forte que a alma
A mina percebeu, o mano chegava com calma
Vai embora amante, tem que ser nesse instante
A meliante tremia encostada na estante

Inconstante, mas entrou de mansinho
Viu o vulto de um corpo cruzar seu caminho
Adentrou o quarto, a expressão de cansada
Não pensou duas vezes, apontou a quadrada

Contra a própria boca, acometeu o disparo
Pra menina saiu caro
Remorso que virou um fardo
Um mano farto, furtou a própria vida no quarto

5 da tarde, ele é mais um covarde
Mas algum dia, também te faltou coragem
Testa franzida, ela ficou deitada
Garganta seca, disse meia pala...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Cidadão Eu

João F. Quirino
Acordo sempre no mesmo horário. Escovo os dentes e tomo o café de costume. Leio o jornal e reajo às notícias. Impiedoso, rogo pragas e penas aos culpados. Culpo a todos: policiais, estudantes e viciados, brancos e negros, presidente, ex-presidente e outro ex-presidente, ministro na berlinda, ex-ministro disso e daquilo, técnico, zagueiro e bandeirinha, evangélicos, gays e até o Papa.
Clamo pela moral e pelos bons costumes, ainda que abomine a expressão. Não concordo com a extradição de uns, lamento a expulsão de uns tantos, execro a permanência de outros. Discordo do arrocho, mas discuto com a diarista se o reajuste é acima da inflação. Culpo o governo pela corrupção, culpo a oposição pela corrupção, culpo os eleitores pela corrupção. Todos iguais, todos iguais!
Preparo-me para mais um dia de trabalho. Penteio o cabelo em estilo clássico. Uso roupas apropriadas. Vou trampar de bike, depois tomo os meus gorós. Passo o dia julgando quem atravessa meu caminho. Elejo inimigos. Transfiro inimigos à posição de amigos e vice-versa. Empunho a espada da indignação irada. Seleciono quem é “do bem” e quem é “do mal”. Sorrio ao lembrar que um dia ajudei o cego a atravessar a rua.
Alerto minha esposa sobre o recato. Tenho ciúmes às vezes, mas não aceito machismo. Sou adulto, vacinado, civilizado, cosmopolita e moderno. Adotei um poodle órfão. Jogo lixo no lixo: plástico, vidro, papel, orgânico e inorgânico. Já fui contra Belo Monte, agora não sei. Luto pelo bom senso e pelo bom gosto, jamais pelo senso comum.
Assisto aos problemas da humanidade sentado no próprio rabo. Peço menos arrogância e moralismo à medida em que me enxergo humilde e libertário. Despejo minha sabedoria no face; dependendo, vou pro blog; com preguiça, eu tuíto. Opino e participo. Denuncio a mídia sem tirar os olhos dela. Pagador de impostos, exijo respeito e serviços de qualidade. Vocifero com a atendente: amaldiçôo a musiquinha e ameaço a empresa que vendeu e não entregou. 
Abro a porta e sigo a vida. Agora, sim. Sinto-me pronto para odiar os conservadores e operar a revolução.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O ponto

João F. Quirino

Por mais que esperasse, não conseguiu conter o susto quando o resultado do exame surgiu-lhe como um soco na cara. Não havia mais dúvida. A partir daquele ponto sua vida mudara para sempre. Sua vida se dividia em antes e depois daquele ponto. Logo vieram as perguntas, bem mais intensas do que nos tempos de incerteza. Como reagirão à notícia? Família, amigos, ele; sobretudo, ele. Como prosseguir com aquilo? Como não prosseguir? Que remédio senão aceitar? Pensou na dor. Imaginou o ponto em seu corpo. Um ponto em forma de célula, a se dividir, a se multiplicar, a se ampliar tornando-se outra vida dentro e distinta da sua. Uma sensação estranha de sobriedade invadiu-lhe a alma. Sim, há de ser bom. Quantas lições trará! Devo amá-lo. Haverá um espírito a animar o ponto? Conformar-se é o que resta. Eis a realidade. À luta! Afinal, é a vida...
Por mais que refutasse a possibilidade, surpreendeu-lhe a calma com que escutou o diagnóstico ministrado em jargões médicos. Não havia mais dúvida. A partir daquele ponto sua vida mudara para sempre. Não gostou da imagem: o ponto a separar vida de sobrevida.  Logo vieram as perguntas, bem mais intensas do que quando ainda restava a esperança de ser somente uma falsa impressão. Como reagirão à notícia? Família, amigos, ela; sobretudo, ela. Como enfrentar aquilo? Como não enfrentar? Que remédio senão aceitar? Pensou na dor. Imaginou o ponto em seu corpo. Um ponto em forma de célula, a se dividir, a se multiplicar, a se ampliar levando sua vida a um ponto-final. Uma sensação estranha de sobriedade invadiu-lhe a alma. Sim, pode haver um lado bom. Quantas lições trará! Devo amar-me. Haverá um espírito para além desse ponto? Eis a realidade. À luta. Fazer o quê? É a vida...
Como é bela a vida.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Na humildade

Eu faço isso sempre sem livre arbítrio
não é por escolha
é como a gravidez
uma hora o filho sai

Eu faço isso
por amar em excesso
por gostar de quem faz verso
e tarda em se conhecer
por ser
um poço sem fim

eu faço isso
enfim
não é por me sentir capaz
Refaço
mesmo sabendo que
não tem como refazer
o mesmo neném

to tentando fazer isso
pra ver se entre cem
uma é capaz de explodir com a força
que tem

essa força cega tateante
desorganizada que não sabe pra
onde vai
pq a força e o amor de uma
mulher sempre começa pelo carinho de pai

De dentro pra fora já
Não flui nada mais
Leiloei minha sanidade
quem pode me ajudar mais?

quem já não se viu neurótico
pegando migalha?
esquecendo de si?

quem não se viu assim, amigo
ainda nao viu nada
ou então é  peça rasa
não é poço é poça
é poça d’água

Que não mata a sede
da mendiga que sou
porque eu não tenho vaidade
mas tenho sede de soul
de alma
e de flow

eu faço isso
pra sustentar o meu desejo
porque arte não da sustento
mas preciso dizer o que sinto
o que penso
o que vejo

eu faço isso
pra controlar minha loucura
pois me chamam  neurose
mas eu tô sóbria  tô lucida
e esperta

e não é preciso ser médium nem louca
pra saber que sua lei é inversa
e esperar pelos seus erros desperta

E na Madrugada insônia
Acabo com isso
Ensopada de chuvas de dores
Rendida sentida
Pois agora oque me resta ...pinga...

Nadja Estevez

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

100 palavras

Glauber Piva

Malandro

Leu Macunaíma como quem compra peixe na feira-livre de domingo: com chinelos Havaianas e bíblia escondida na alma, recitando os parágrafos como se lesse os preceitos divinos de cada dia.
Lembrou-se de José e seus irmãos, de Moisés e seu cajado, de Jiguê e a Muiraquitã. Perdeu-se no tempo e pensou no país. Misturou personagens e entendeu que o Brasil nasceu de uma grande confusão de gente esquisita e máquinas com sotaques estranhos.
Preguiçoso absoluto, manteve os olhos vigilantes às trairagens do mundo e entendeu que malandragem, quando é demais, engole o malando no chá-das-cinco com bolachas e vaselina. Ui!
***              
Jogador

Gostava das vitórias, mas os artifícios do jogo lhe davam prazeres incalculáveis. A troca de olhares, a conversa medida, o toque inesperado... Alimentava-se da expectativa de romper o nunca invadido, de apresentar o não-anunciado.
A vítima, como chamava em silêncio, não precisava ser bonita, ter peito empinado ou celulite futura, mas tinha de oferecer-lhe recompensa ao risco, pagar-lhe a reputação. Após a ressaca moral, merecia o auto-perdão.
Passou por mãos e olhares, perdeu-se em curvas fatais. Tudo com silêncio e satisfação. Sempre coerente, o drible lhe encantou mais que o placar. Assim ganhou fama, perdeu o respeito, ficou sem troféu.
***
Saudade

Longe de casa se parecia com ninguém. Era único. Amigos, restaurantes e beijos lhe davam alegrias, mas não lhe ofereciam a cumplicidade do seu quintal. Perguntava-se pelo que faltava. Não podia traduzir. Sua identidade fora forjada com ferro especial. Diferença que só brasileiro pode entender.

Como se fosse carimbo na alma, trazia nas narinas o cheiro de terra molhada que conhecera na infância; nos ouvidos o grito da mãe mandando banhar-se; no fundo dos olhos o brilho do céu do hemisfério sul. Iluminou-se.

Com a memória em beliscões, tirou a camisa e gritou: “ai... que saudade!”

Ninguém entendeu nada. “Foda-se!”
***
Sapateira

Filha de remediados pais separados, visitava o mundo-da-lua comprando sapatos. A cada semana, dois ou três novos pares inundavam seus caminhos. Com dependência insaciável, passou a traficar ingressos para desfiles e roubar modelitos exclusivos de lojinhas super-in.
O pai quis interná-la, mas o delegado exigiu flagrante. A mãe quis vigiá-la, mas achou que seria quadrilha. Os irmãos, cheios de inveja, encomendaram tênis de marca. Até as amigas, que fingiam não perceber, organizaram as filas dos empréstimos e aluguéis.
Tomou remédios, fez terapia, visitou a polícia, abriu concorrência. Quando quis mudar de vida, já era tarde: acostumara-se ao cheiro de chulé.
*  Também postado no blog de Glauber Piva: www.glauberpiva.blogspot.com

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Carmo

Minha vizinhança
quero - a paz dos passarinhos - quero
tempestade e bonança

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Latejar

João F. Quirino

Misturadas, água e lágrima escorriam pelo corpo. O ódio e um sentimento obscuro a mostrar-se como culpa – “Por que culpa, meu Deus?” – escorriam pela alma. Cabeça a latejar. O tapa, o tapa, o tapa. Em compasso com o palpitar nervoso do coração. Também pulsava, ininterrupta, a sentença: “Vagabunda! Vagabunda!”. Maldito mantra. Teria quisto, merecido, provocado? “Tantas perguntas, meu Deus!” Era lindo, mas não o queria. A amiga, sim. Quem sabe, sendo lindo, devia também querê-lo. Devia, devia? Só que a amiga o viu, chamou-lhe, era dela. No entanto, apontou-lhe o banco de trás do carro importado. Banco de couro. A si, mandou sentar-se na frente. Mandou, mandou! Do banco de couro, sorriu amarelo à amiga: “Que posso fazer, ele mandou”. Só carona, mais nada. Fantasia emprestada, assim, destruída. Será sangue esse vermelho? Aceitou a carona, ficaria em casa. Da amiga, sim, seria o carnaval. Ducha fraca, nem o corpo lavava.
Ecoava a voz do irmão: “Puta, sua puta!”. Retrucava: “Quem é você?”. “Sou homem, posso!”. Posso, posso, posso... Latejava o tapa que se seguiu à recusa. Àquele seguiu-se a voz que vibrava, no ritmo da dor: “Para todos, menos para mim?!”. Não, não queria. Não assim. Era lindo, mas não assim. A imagem da amiga, derrotada: “Escolheu você; é seu o carnaval”. O carro, tão raro no subúrbio. Maldito banco de couro. Pediu que a deixasse também; indiferente, partiu. Ameaçou gritar, saltar, ceder. Lindo, lindo... Então, o tapa – “Para quê o tapa, meu Deus?” –, o estrondo, a dor, o medo, a entrega. O toque forçado, a carne invadida, o gozo sem gozo, a alma humilhada... a fantasia rasgada. Fantasia? O tapa latejando qual a voz da mãe: “Quer emprenhar de moço rico, quer?”. Nem pensar. Tirava, tirava. Só queria viver. Ser feliz... feliz. Sumir dali de uma vez por todas. Queria escorrer pelo ralo. Como a lágrima que caia dos olhos e a água, do chuveiro. Inútil. Continuava a se sentir imunda.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os Almeida

Pedro Aragão


Cinco pessoas:
Se condensam?
Se completam.
Se convencem...
Se combinam,
Se conversam;
Se contemplam!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

(Pag)ode à nova classe

Éder Menegassi

A velocidade das escadas rolantes estão aquém da nossa pressa.
Mendigos querem, exigem, pizza e churros. Portuguesa e doce leite.

Transformaremos nossa quebrada em bairro nobre nem que pra isso devamos ter aqui uma, uma... uma locadora! Só com clássico. É, superomi, batima, voverine. Só os loko, só os frenético. Aí é vida!
A gente ezige, porra! Uma biblioteca com vários cd de fank, que é pra gente treinar interpretação de texto.

Tú vem com a borracha
que eu abro o meu  caderno
cdf, vem com tudo
faz verão no meu inverno

Molha o dedo na língua
e vai virando a folha
Vê se me rabisca toda
antes que o lápis encolha

Interpretação do que? Céloko. Sou mais umas oficina pra nóis tuná as nave. Aí é vida! É disso que eu tô falando!

Ixi ó, suave. Arrumei um trampo novo. Firma de marketing. O que vai funcionar lá. Eu mesmo trampo na obra.
Segunda à sexta, suave. Fim de semana é só no rolê. As novinha tudo querendo, mulekote.
Aí é vida! É disso que eu tô falando!

Os pais preocupados resolvem agir. Faixa esticada na rua principal: Aviso aos filhos: Disparos à noite, esgoto à céu aberto, biblioteca sem livros.
Nada alude à prosperidade do nosso futuro. Consumamos.